(Sob a Alegação que Ela Representa o Passado)
Observe, releia esse título. A exposição já ali se antecipa, situando a história pessoal e certa justificativa também na apresentação da própria artista, de sua realidade de vida. Trata-se de relato pessoal, feminino, tomado como assunto, e devo lembrar que nosso olhar (não apenas o meu) segue norteado por uma lógica heteronormativa, a qual damos por óbvia, graças à prevalência do modelo social em que nos inserimos.
Então, do princípio, esta é uma exposição individual de arte criada ao longo de uma vida e produzida na época pandêmica ocorrida no início do segundo decênio do vigésimo primeiro século da era cristã ocidental. Conceitos como corpo, dor e intimidade não podem mais ser generalizados dicionaristicamente, como antes o faríamos, pois algo em nós mudou. Da mesma forma tecido, linha, agulha e próteses, patuás e memórias foram acrescidos de uma lógica a ser revista. Não à toa os bordados retornam subitamente como matéria da lida artística mundo afora, neste instante, tomados indistintamente por homens e mulheres como ferramentas urgentes. Por que tantos e tantas artistas estão bordando neste momento?
Até aqui ainda não me refiro nominalmente a ela, a artista, autora, assunto, pessoa sujeita, emprestada como coisa oferecida ao escrutínio, considerando que qualquer acesso a este texto já está fatalmente circundado por sua nomeação. Ou seja, você pessoa leitora, ausente ou fisicamente presente na sala, no sítio, na esfera em que esta exposição se organiza, já o sabe. Já conhece a quem me refiro, já leu seu nome aqui, ao redor. Então escolho mantê-lo em silêncio, para que se verifique a possibilidade de extrapolarmos de uma circunstância íntima alguma generalidade que nos inclua. Quando isso seria possível, me questiono. Em que circunstância se extrapola da personagem uma identidade em comum? Reservo, também isto, para mais tarde responder.
A cada palavra aqui escrita esbarro no problema de gênero e retorno tentando permanecer no feminino ou neutro, dando-me conta de quanto de masculino há na linguagem, no idioma, na expressão, no fraseado, no próprio pensamento. Sou obrigado a pensar como uma única palavra construída na prevalência masculina pode ofender a ideia de uma possível universalidade intima e pessoal. Com quantas palavras substantivas poderei contar nesta missão de resgatar da língua uma língua?
Ela, essa específica mulher, tem aqui reconstruída sua corpórea essência imagética fidedignamente resgatada, duplicada na forma de telas quadradas e ovaladas, flanelas soltas, trouxas, bolsinhas contra mandingas e uma cama para pequena criatura. Aos poucos consigo pensar estritamente em palavras femininas, mas me esforço para conseguir. No entanto, ao exercitá-la, essa alternativa me regula, encaminha possibilidades e sugere uma possível persistência. Simultaneamente me alerta para o fato mais simples: este texto deveria estar sendo pensado por uma mulher e, não o sendo, jamais conseguirá alcançá-la… Então escolho reduzir o passo, desacelerar os impulsos e colocar-me ao seu lado, com mais cuidado, prometendo tentar uma aproximação. Afinal, me coube construir esta curadoria e, portanto, suponho que minha leitura, mesmo que contaminada, possa contemplar o devido respeito.
Consegui fazer poucas anotações no rápido processo de construção deste projeto, e o acompanhamento anterior do trabalho da artista muito me auxiliou. Mas, na prática, trata-se de uma série com histórico próprio. Pois então, fazendo tais anotações, primeiro me ocorrem as amarrações. Os trabalhos estavam guardados em caixas de papelão, reunidos por séries, muitas vezes enrolados, como quando se organizam as malas para uma viagem e algumas peças vão sendo acomodadas para ocupar cada pequeno espaço.
Pois assim são os pacotes da artista, preparando a remessa para a galeria, ainda que isso se dê de forma natural, como uma cesta de piquenique arrumada às pressas. Diversas vezes, na montagem, descobri que havia ainda algo mais a ser desenrolado no trabalho, mais uma casca, mais uma camada. De tal forma as trouxas se guardavam dentro de saquinhos, que por sua vez estavam em outras embalagens, que me peguei perdido. Exigiam uma forma de penetração, algo que havia de ser perpetrado. Ir mais longe, dentro. Foi assim que o pequeno acervo revelou-se ampliável, inesgotável, clamando por espaço e disposto a ocupar mais lugares, como agora se encontra, nesta galeria. Imagine então que a montagem refere-se a uma aparição, uma retirada de dentro para fora, descascada, descamada, como corpo que ultrapassa o campo cirúrgico. O que chegou à galeria poderia confundir-se com o mundo e, no entanto, distingue-se como forma de vida.
Seguem as amarrações na construção de um bordado simultaneamente econômico e quase ocasional, como que feito às pressas, em que sempre sobram fiapos e linhas de cozer. Algo que se faz escondido, correndo, enquanto ainda há tempo, como se a urgência denotasse uma ameaça, um perigo em deixar provas que possam ser resgatadas e compreendidas. Ou me engano e as linhas desenham veias, artérias e sangue derramado? Mas então o bordado não serve mais para ornar a vestimenta e torna-se relato do corpo que ali se guarda, o corpo preservado e vestido. Camadas como dermes e camadas epidermes. Véus e cicatrizes.
Observo a questão do desenho, dos contornos e miolos preenchidos e as anotações insistentes de letras e números, caligrafia veloz, hieróglifos repetidos. As tramas dos tecidos simples servem de matéria, sugerindo acontecimentos tópicos, dermatites e peles ora aveludadas, ora enrugadas. E esquemas orgânicos, procedimentos ilustrados em sua sequência, como conjuntos de exames, de radiografias, registrando etapas. Há um histórico de acontecimentos que precisou ser registrado. Foi assim, aconteceu comigo, esta aqui sou eu, estão a dizer.
Separei, propositadamente, os conjuntos de obras similares, as pequenas séries, para que pudessem ser comparados em sua amplitude. Quinze telas registram repetidas vezes a mesma situação. Três corpos, três pessoas, uma mesma pessoa três vezes, três bonecas vestidas exibem suas cicatrizes. Os modelos apontam para um léxico de moda feminina, algo de que o estilista mineiro Ronaldo Fraga muito se agradaria. São vestidinhos esquemáticos, variados, nunca o mesmo, jamais capazes de esconder a nudez e o histórico das personagens. Reportam um tempo infinito, uma duração eterna, quinze meses ou quinze séculos ininterruptos, quarenta e cinco tempos, o incômodo de paciente submetida às manipulações constantes da enfermagem, que despe, vira, lava e veste, continuamente.
No outro lado da galeria, na parede em frente, telas como bastidores ovais parecem escotilhas de um mar interno, como uma gosma de líquens e corais encrustados, na verdade rendas e moldes de ouvido, tampões, peças de isolamento acústico, buchas para nada ouvir, isolando-a do mundo. Fazem pensar, afinal, o que fizeram com ela? Ouso exclamar, meu Deus, o que fizeram com essa mulher, por que fizeram isso com ela? Talvez se explique assim tantas mandingas, tantos patuás, como pedidos de proteção, orações e promessas. De quantos sofrimentos se faz alguém?
Pois a mulher forte arrancou sua dor, a aprisionou numa caixa e alegou a superação de um passado. Não apenas uma exposição de pinturas-bordados-desenhados, mas o relato do percurso épico em que o herói de tantos enfrentamentos é na verdade uma heroína. Não Alice acidentada em um lugar descabido, cheio de truques e pequenas ameaças, introjetada em sonho no fundo de um poço. Não uma sereia encantadora, cantante, ameaçando marinheiros, ou uma bruxa como Circe em sua ilha, transformando homens em porcos. Não uma mulher servindo ao heroísmo de um homem. Uma mulher apenas, independente do mundo e submetida ao seu próprio corpo, escrevendo seu relato de superação. É na épica que extrapola a personagem que encontraremos um relato para nossa identidade.
Em sua profícua produção quase insana, inesgotável, Suyan de Mattos, afinal digo seu nome, preparou simultaneamente três exposições distintas, que a partir de agora poderemos acompanhar na cidade. Na forma, naturalmente instintiva, como os eventos se organizaram e serão mostrados, surge a possibilidade de aproximar-se de seu mundo. Primeiro esta, em que se relata o heroísmo de sua superação física; depois outra, em que a veremos, espelhadas em bordados, as aquarelas de Gisel Cariconde, prevista para o mês de julho deste ano de 2021 na Referência Galeria; e ainda outra, para o ateliê de Valéria Pena-Costa, em que se dedica a folhear os lábios belicosos de sua Jupira. Ou seja, a reconstrução do corpo feminino, o espelhamento da identidade feminina compartilhada e a mulher-vulva como mito de poder. Uma trilogia da mulher.
Por fim, quero me referir ao cérebro da artista, que se oferece como uma pequena trouxa amarradinha, pouco suturada, instável e gotejante, feito de pano de chão, saco de aniagem mais comum que se compra nas ruas, serapilheira de uso doméstico. Em certo momento a mãe chega de visita, levando tais sacos para a filha, apenas sacos para a faxina da casa, algo útil, que sirva para limpar. E de dentro da filha salta a artista que exclama – Quero. Vou bordar. É esse ímpeto que devemos observar. A capacidade infinita de se reencontrar nas coisas comuns como ato de máximo heroísmo. Eu posso, tudo eu transformo. Eis a minha história.
Ao tratar do herói, em esse ofício do verso, o escritor argentino Jorge Luis Borges nos diz assim:
”… existe algo com a história, com a narrativa, que sempre estará presente. Não creio que um dia os homens se cansarão de contar ou ouvir histórias. E se, junto com o prazer de nos ser contada uma história, tivermos o prazer adicional da dignidade do verso, então algo grandioso terá acontecido. Talvez eu seja um homem antiquado do século XX, mas tenho otimismo, tenho esperança; e como o futuro comporta várias coisas – como o futuro comporta, talvez, todas as coisas –, acho que a épica voltará para nós. Creio que o poeta haverá de ser outra vez um fazedor. Quero dizer, contará uma história e também a cantará. E não consideraremos diversas essas duas coisas…”
Ralph Gehre, abril de 2021